Por Marielle Ramires
Epifania.
Assim classificaria nossa passagem por Vila Bela da Santíssima Trindade.
A primeira capital de Mato Grosso foi palco de incursões históricas dos povos negros arrancados de África na história que conhecemos. Ali chegaram escravizados, mas com suas potências, saberes e tradições.
A cidade nos acompanhou todos os dias depois que partimos. Era a minha primeira vez lá, no município mais negro de Mato Grosso. Como cuiabana, Vila Bela já habitava meu imaginário como a primeira capital do estado. Mas tudo que havia ouvido era insuficiente para esse primeiro encontro, precisava estudar mais.
Assim, li e depois repeti várias vezes, que aquela gente havia sido deixada pra trás. Que quando transferida a capital do estado para Cuiabá, entre 1822 e 1835, teria sido caro demais deslocá-los, por isso haviam sido deixados à própria sorte.
Na chegada, depois de nos banhar nos cânions do Parque Serra Ricardo Franco, começamos nossas agendas na cidade. A primeira parada: as castigadas Ruínas da Igreja da Matriz. Patrimônio histórico hoje tomado por pombos e doenças, uma cena simbólica do tratamento dado à memória daquele povo.
Ali encontramos o procurador do município Mauro Crema, que entre leituras, contou do apagamento histórico com que a cidade convive. Defendeu que aquela narrativa de derrota sobre o “povo deixado para trás” almejava invisibilizar sua história de lutas e resistências. Que houve apagamento para despotencializar histórias como a de Tereza de Benguela e seu revolucionário quilombo Quariterê. A heroína chegou a desenvolver um parlamento popular negro e indígena para a governança do quilombo, algo poucas vezes realizado.
Em diálogo com as leituras de Mauro, em 1935, ano que a transferência da capital foi concluída, a Convenção de 1826, que criminalizava o tráfico negreiro no Brasil, estava em vigor. Assim, porque seria mais fácil transportar as populações humanas de África à Cuiabá ao invés de Vila Bela da Santíssima Trindade à nova capital?
Outro fato importante que marcou o período, foi a revolução do Haiti (1791), que tomou o poder popular no país sob arrepio das colônias europeias. O fantasma da revolução assombrava o senhorio de escravos, também sob espreita do crescente poderio inglês, que pressionava pelo fim do tráfico humano por conta de sua revolução industrial. Ou seja, não faz nenhum sentido pensar que toda aquela gente seria deixada para trás de bom grado.
Eu ouvi tudo sem respirar.
Era óbvio! Como puderam nos enganar tanto? Quão profundo foi o apagamento da nossa memória? Chorei com aquele reencontro.
E virei água dali em diante nos caminhos de Vila Bela.
Me emocionei com a Dança do Chorado, o canto entoado pelas vozes finas das mulheres com suas saias saracoteantes, segurando na cabeça uma bebida típica local, o canjinjin. Conta-se que quando escravos fugitivos ou transgressores eram aprisionados e castigados pelos seus senhores, os então entes queridos solicitavam seu perdão e liberdade dançando o Chorado. Nos tempos da colônia e império. Uma fração de memória preservada pelo tempo.
E as cizânias. Há quem diga que os capitães do mato que ficaram ganharam as guerras e tomaram o poder local implantando sua própria tirania. Disso quase nada sei, só o que relataram.
Conhecemos ainda a dona Germana com seus quitutes maravilhosos, Czarina Brito e Romildo Alves, que acolheram nossa roda de conversa na secretaria de cultura municipal. Luana, nossa guia; dona Meire, cujo marido até poucos anos atrás ainda era escravizado em um latifúndio. Hoje, ela tem o próprio negócio e cozinha uma comidinha caseira inesquecível. Que carne de panela e feijão!
A roda de conversa se esticou noite adentro. Todos falaram. E lá foi o primeiro momento que entoamos nosso Refloresta Já.
A gente saiu de Vila Bela da Santíssima Trindade impactados.
Seguimos viagem, e Vila Bela seguiu com a gente.