Diário de Bordo: uma missão Floresta Ativista no 1° Mercado de Música Patagônico

por | set 12, 2025

Por Paulo Zé Barcellos

O Sul da América do Sul, necessitava de um mercado de música, diversas conversas em diferentes mercados geraram esse diagnóstico. Do Sul ao Sul a irradiar para todo lado. 

Em 21 de agosto de 2025, nasceu o 1° Mercado de Música da Patagônia e estivemos lá para conferir de perto esse momento singular para a difusão da música do Sul do continente e a criação de redes potentes de interlocução entre os países irmãos. 

Da cabeça da intrépida Paola Vasquez e sob a luz ancestral de Diego Silva nasce o 1° Mercado de Música da Patagônia, em Bariloche, Argentina. Um mercado construído de forma artesanal, entalhado pelo amor, coragem e visão. Nesta primeira edição o evento contou muito mais com a colaboração e apoio do que de patrocínios, surge da força de trabalho local, cooperação de fornecedores, artistas e poder público ainda que de forma tímida. Além do suporte de mais de 30 programadores de diferentes países da América do Sul que entenderam a importância de estar em Bariloche prestigiando o nascer deste importante Mercado, que certamente vai gerar muitos frutos.

“Dos pequenos frascos saem os melhores aromas” esse ditado faz todo sentido para o que segue, após 4 dias de convivência participando intensamente deste singelo evento me deparo com meus pensamentos e reflexões pós Mercado, sobrevoando aqui agora, lado a lado com a imponente Cordilheira dos Andes e os imensos lagos até Buenos Aires. O relato que segue é dotado de poesia, introspecção e análises do ponto de vista pessoal de um ser humano que sempre sonhou em visitar o Sul do continente e que ao realizar esse sonho passou a sonhar ainda mais alto com as fortes conexões reais e possíveis para a circulação da música na América Latina.

Dia da chegada – 20/08/2025

Voar para Bariloche em vôo direto desde Porto Alegre foi um luxo, 3 horas para sair do frio úmido e chegar no frio seco, sobrevoando os campos áridos que levavam ao sul do sul. Ao mirar os primeiros cumes nevados a certeza que os dias por vir seriam muito especiais.

Desembarquei em Bariloche e lá estava a anfitriã sonhadora Paola Vasquez que vi pela última vez no Morrostock Reconstruir RS em abril deste ano. Lá conversamos muito sobre conexões e cá estamos de novo. Fomos direto a casa dela que mora na periferia de Bariloche, o lado B da cidade turística. Comemos uma massa e ela me levou para casa do Diego Carry diretor do Festival de Cinema de Bariloche e curador dos Festivais de Neuquén e Tierra del Fuego. Também é baixista da Gusanos de Seda que eu veria ao vivo dias depois. SEDA que também foi apresentada a ele, assim como a Mídia Ninja e o Cine Ninja cujo tenho certeza a conexão será natural e orgânica. Dormi tri bem agradecendo as parcerias e a Rede por ter acreditado e me enviado para essa missão patagônica.

Dia 1 – Lançamento do Mercado 21/08/2025

Acordei feliz de ter passado a primeira noite no local mais ao sul do planeta que já estive na vida, tomei um belo banho e fiz um café. No GPS coloquei o endereço da casa da Paola que seria meu próximo destino e resolvi ir a pé mesmo, 40 min de caminhada, me alertaram que era longe, que eu não precisava fazer isso, mas eu queria sentir o ar gelado e andar por um local desconhecido por completo. Como eu não tinha dados, cuidei para que a tela não fechasse, do contrário eu perderia literalmente o rumo. A caminhada se deu por chão batido, o lado B de Bariloche é todo assim e nenhum turista circula por ali, o que não me disseram é que tem muitos cachorros por metro quadrado dispostos a defender seus lares, uns presos mas muitos soltos e eles vinham pra cima mesmo, a solução foi achar um cajado e ficar experto. Cheguei a meu destino são e salvo após alguns sustos, eu convivo com cães mas no fundo tenho medo, certamente é trauma de infância. Então chegar ao destino foi como subir uma montanha e chegar ao cume, coisa que tmb fiz dias depois.

Já estavam na casa de Paola, Adriano Ministro que esqueceu sua “campeira” no Brasil e sem uma destas a vida fica mais complexa. Chegaram Adrian de Bucaramanga Colômbia e as Cordobesas Dafne e Vicky. De lá matamos largo tempo comendo e tomando mate até chegar o momento de ir a Biblioteca Sarmiento para o lançamento oficial do 1° Mercado de Música da Patagônia. O local escolhido é uma espécie de ponto zero do turismo de Bariloche, perto do Letreiro da cidade e do portal que leva a rua principal do comércio onde estão as chocolaterias e as lojas de aluguel de roupas para esquiar. O lançamento foi rápido, uma apresentação de uma cantora Mapuche com um Tambor Xamânico muito oportuno para iniciar os trabalhos deste já místico evento, seguido de uma fala da Paola e do Secretário de Cultura de Bariloche. Um pequeno Coquetel foi servido ainda que não se pudesse beber dentro da Biblioteca. A atividade seguinte foi ver o show de tango raiz da Le Forfai no auditório no segundo andar da imponente locação de mais de 100 anos. O tango é patrimônio argentino e atrai visitantes e turistas do mundo todo. A Orquestra fez bonito em um show repleto de clássicos, entradas de bailarinos e a interação com o público que foi convidado a dançar, rezei pra que não fosse notado mas fui, jamais diria não a uma bailarina profissional de Tango e quando ela me pegou pela mão me entreguei ao momento e fiz o melhor que pude bailando tango na Argentina. Dali saímos para nossa estalagem onde ficaríamos pelos próximos dias até o fim do Mercado. Fui convocado para dirigir o carro da Paola levando 4 pessoas comigo, foi um prazer seguir pela rota ainda mais ao sul 30 min na direção do Vale Suíço e circuito chico até a Hospedaria Valle del Sol. 

Dia 2 – Chegou a Neve!

Esse inverno não foi generoso com os turistas que buscavam a Neve, nevou muito pouco, muito abaixo do normal e um certo ar de preocupação pairava no ar, não pra menos as mudanças climáticas em âmbito global estão cada vez mais drásticas e nevar pouco na Patagônia é um grande problema. Mas para nossa sorte e coroar a força mística do 1° Mercado de Música da Patagônia, o dia amanheceu branco cristalino repleto de neve e nevando. Um deleite, um prenúncio para quem estivesse capacitado a entender. Tudo sob a neve fica lindo e o Mercado seria lindo com certeza, e a ancestralidade, Diego Silva, estava claramente representada naquela nevasca. Café da manhã com o quorum de programadores e programadoras já quase completo e a primeira atividade do dia seria lúdica. Ministrada pelo grupo de humor e música Tranqui 120 interagimos em uma vivência em grupo entre os players do evento o que serviu pra quebrar qq tipo de gelo ou timidez, ao terminar a vivência éramos como um corpo só e dali pra frente foi só seguir nesse ritmo de interação que nada daria errado. A primeira mesa sobre streaming só fortaleceu as dores de sermos escravos das bigtechs do setor e salvo algumas poucas alternativas sermos reféns desse mecanismo imperialista de difusão sonora e estratégias de carreira. 

O almoço foi servido logo após e rumamos para o prédio da CEB precisamente ao 5° andar onde a Vista para os andes e pro lago Nahuel Huapi é de tirar o fôlego. O primeiro conversatório do dia foi sobre os Clusters de Música de Cartagena na Colômbia, muito interessante como se dá o processo de internacionalização da música na Colômbia. Os 3 primeiros shows Cases aconteceram ali mesmo e o encantamento só aumentava. 

Saímos para a rua principal e a atividade seguinte seria visitar a uma loja/fábrica de chocolates. Assombro entrar em uma loja destas, convidaram alguns de nós para “fazer” chocolate e lá fui, junto a mim foi a Dafne Usorach e tivemos a experiência de produzir o idolatrado e mundialmente conhecido chocolate de Bariloche. De lá para o Valle del Sol onde um show e a Janta fariam parte da programação. 

Mesa Mídi era o show, só fui entender do que se tratava quando vi, achei que era algo eletrônico mas não no formato que foi. Uma mesa grande posta no centro da sala onde mais cedo havíamos feito a vivência, deu suporte a todo tipo de traquitana eletrônica que eram operadas por 4 pessoas ao mesmo tempo, cada qual em sua posição, Norte, Sul, Leste e Oeste. A certo ponto perguntei a um deles se era improviso me disse que sim, daí pedi para tocar o set de percussão digital o que me foi permitido e interagir com a música. 

Jantamos, bebemos algumas cervejas e eu juro, estava indo dormir quando chegam os chilenos de Valdívia e Osorno e com eles umas garrafas de umas bebidas artesanais Chilena chamadas Guindado e Murtado  eu tomei uns shots dessa bebida a convite deles e daí não me lembro de muita coisa mas articulei uma tour completa no sul do Chile sob o efeito deste substrato. 

Dia 3 – Os Ventos da Patagônia 

Pra quem teve a felicidade de acordar sem dor de cabeça meus parabéns, já não estava mais tudo branco de neve a parte o cume das montanhas cercanas porém nevava, e seguiu nevando timidamente durante o dia. Diego Silva presente. Servido o café da manhã e rumamos na Van do Saccomanno até o 5° andar do CEB para a mesa sur sur o mapa invertido e seguido do painel desafios da gestão cultural. Dois showcases foram realizados.

Entrou o vento, e mudou tudo. A partir de então é vendaval atrás de vendaval, e só vai aumentar, a sensação que tive foi de estar conhecendo o Vento Minuano na fonte, no seu nascedouro gélido cortante e imparável.

De lá saímos para comer no El Comedor e fomos ao centro de luta e resistência cultural La Llave que fica no lado B da cidade, na periferia. Ali rolaram mais shows e duas mesas, uma sobre as Associações na música e outra sobre circuitos e festivais do qual pude falar sobre o Morrostock, ABRAFIN, Floresta Ativista, o Fora do Eixo e tudo que de certa forma me levou até ali.

De lá fomos ao Vale del Sol onde rolou o Open Folk, um show muito legal que une diversos artistas independentes.

Jantei, reuni meus 5% de energia e fui dormir, tive que entrar pela janela uma vez que a chave havia desaparecido.

Dia 4 – Grande Final

Manhã livre, Inti convidou pra subir até o Vale Suíço e lá fomos, Seba, Sheila, Inti e eu. O Vale Suíço é um local turístico para comer e comprar no meio dos vales, tiramos umas fotos, visitamos umas lojas e voltamos, a estas alturas o vento já apresentava rajadas de 80kmh pra cima. Tivemos que desviar o caminho pra voltar uma árvore gigante caiu sobre a pista e pra derrubar uma árvore deste quilate o vento realmente precisaria fazer uma força igualmente gigantesca. Pela estrada restos de galhos e folhas o vento estava impiedoso. O almoço no Vale del Sol cortesia de um açougue parceiro foi Chorizos y papas. Quando chegamos ao porto o lago havia virado mar, haviam ondas quase que surfáveis o vento chegou aos 90 km h ou mais e tudo acontecia normalmente inclusive a visita dos turistas ao Letreiro de Bariloche. Me aventurei no vento que tava de rachar, a cidade já o conhece então é tudo preparado para recebê-lo. Os shows ocorreram na maior tranquilidade e foram 20 atrações se alternando de um palco para outro numa grande mostra de música da grandiosa região patagônica. Em sua primeira edição o Mercado teve como país homenageado o Uruguai não à toa, pois a partir do mercado musical que muita coisa se construiu.

Dia 5 – Como evitar depressão pós Mercado?

Relato bandas

No geral o nível das bandas e artistas foi muito bom, a música reflete a paisagem, o frio e a estética introspectiva típica de uma região pouco povoada com raízes fortes. A canção predomina, mas há bandas, há festa, a ritmos, há de tudo. Foram mais de 30 atrações musicais, há uma playlist do Mercado estou deixando o link pra quem quiser se aprofundar, é uma ótima lista para ouvir a qualquer tempo. Vou a alguns destaques que em minha opinião e gosto pessoal predominaram. Elencando por ordem que vi.

Emanuel Ayala, Kala Rivero, Leila Cherro, Mica Sancho, Lucila Marisco, Pepa Diaz, Marcelo Saccomanno, Gusanos de Seda, Alizieri Candombe Band, Tranqui 120 estes todes da Patagônia, de Córdoba Dafne Urosach e ainda destaco a grande La Mare da Espanha as Uruguaia Diana Remundey e os fabulosos Pájaros Kiltros da Isla de Chiloé no Chile que sempre são um deleite escutar.

O dia foi de relaxar algumas despedidas e a missão difícil de evitar a depressão pós Mercado. Convidei o amigo de Bucaramanga para subir o Cerro do Campanário, com uma carona de carro em 5 minutos estávamos na base, uma fila de turistas a perder de vista aguardando para subir de teleférico e nós resolvemos subir a pé pelo bosque, melhor escolha da vida, além de economizar bons pesos a caminhada foi reconfortante. Deu pra oxigenar o cérebro e assim evitar qualquer depressão pós evento, o visual do cumbre é de outro mundo. Que lugar abençoado, ficamos lá até quase o sol se pôr pelas 19:30h os turistas vão embora às 17h o que nos deu um tempão sem quase ninguém lá em cima pra ficar de boa com os pensamentos. 

45 min de subida, 35 min de descida mais 40 min pela beira da estrada até o Vale do Sol onde fiz um carreteiro com o resto dos chorizos e desmaiei na cama. Destaque para hospitalidade dos responsáveis pelo hotel extremamente familiar, inclusivo e simpático.

Dia 6 – Voltar para casa

Dia de voltar pra casa, o vôo foi remarcado, ganhei 3 horas, e diminuiu o tempo de quarar no aeroporto de Buenos Aires, que ótimo. Paola mandou um uber que nos levou até o Porto de San Carlos e de lá ela me levou ao aeroporto. O dia já ensolarado mais quente que os -1 a 4 graus que nos acompanharam na maior parte do tempo, o vento amainou e o céu azul com nuvens passageiras me desejava boa viagem. Estava como se estivesse ouvindo Diego com quem tive um breve encontro em minha vida mas que me marcou profundamente. 

Me despeço da Paola, mentora deste mágico movimento, com certeza nos veremos muito em breve. A música da Patagônia com todas suas particularidades está pronta para circular, e a região está pronta para receber circulações, o encantamento será certeiro. É impossível respirar o ar gélido do Sul do planeta e não ser arrebatado por ele. Demorei para descer mas não tardarei a voltar, já dá pra dizer que os laços criados são fortes, como uma família, redes que vão perdurar! “Dos pequenos mercados saem as melhores conexões”. 

Patagônia você ganhou meu coração se tornando desde já um de meus lugares preferidos no mundo e ainda falta muito a conhecer! Voltaremos na próxima, trarei mais gente do Brasil junto e vamos aprofundar estas conexões! 

Texto escrito em 26 de agosto de 2025, voando entre Bariloche e Buenos Aires e finalizado na mesma data voando de Buenos Aires a Porto Alegre.

VOLTAR