Por Karla Martins
A Amazônia tem sido motivo de grandes preocupações e cuidados do mundo. Isso resulta na necessidade de manutenção da floresta em pé, com condições de equilibrar o clima – a crise climática já é a maior urgência ambiental – o que garantirá a permanência da humanidade no planeta Azul. A Amazônia é habitada por povos originários, povos tradicionais e um contingente urbano que, na sua maioria descende dessas populações, direta ou indiretamente.
No final do século XIX, os grandes fluxos migratórios para a Amazônia, principalmente em virtude do primeiro ciclo da borracha, trouxeram a esse território levas e levas de brasileiros, latinos e até europeus que buscavam a riqueza grandiosa e melhorias de vida imediatas. Esses fluxos geraram inúmeras trocas culturais, agregamentos, dispersões e uma população que, na sua maioria, descende dessas raízes, especialmente a urbana.
Esse breve histórico é importante para compreendermos que as urbanidades amazônicas, que são muitas vezes invisibilizadas e desconsideradas (em função das populações da floresta) – resultam da floresta e dessas raízes ancestrais e orgânicas.
Geograficamente a Amazônia é atravessada/ocupada por nove estados brasileiros e, mesmo não sendo o bioma principal de alguns deles, faz-se presente, o que resulta em quase 60% do território brasileiro. A intelectual paraense Zélia Amador de Deus refere-se a região no plural: “As Amazônias”. Ela ressalta que, em cada um desses estados, as realidades geográficas, populacionais, linguísticas e sociais são tão distintas que nos permitem utilizar o plural como modo de fortalecer a rica diversidade cultural constituidora dessas Amazônias.
O Brasil possui realidades culturais muito intensas mas, há um equívoco, fortalecido pela formação colonizadora a que foi submetido: esse equívoco é um pensamento que aponta somente uma região com condições de produzir com qualidade, nesse caso, o Sudeste brasileiro, já tão citado de maneira jocosa e crítica pelo personagem “Graúna”, de Henfil, que alardeava os problemas do “sul maravilha”, em detrimento das questões econômicas do nordeste brasileiro. A Graúna é personagem dos anos 70, período da ditadura no Brasil. Infelizmente, 50 anos depois seguimos ouvindo o discurso de que a potência brasileira é o sudeste, argumento que coloca o restante das regiões em desvantagem.
Esse pensamento associado a outro equívoco – que é o não reconhecimento das populações urbanas amazônicas (decorrente da ideia de que todos/as/es vivemos no meio do mato, usamos como transporte cipós e somos ameaçados/as/es por cobras gigantescas, onças e outros animais perigosos) – coloca a população amazônica abaixo da linha possível, tratando todos os habitantes como incapazes e necessitados de “tutela”.
“O Rio de Janeiro terá que fazer a COP – Conferência das Partes, em 2025, que será em Belém!”. Essa frase – dita por um dos palestrantes em recente evento, na cidade do Rio de Janeiro, na Pré Conferência Ambiental e Justiça Climática Antirracista – revela como é tratado tudo que não é ou não vem do sudeste. Isso dito por uma autoridade brasileira no campo internacional, reproduz uma maneira de pensar construída sobre apagamentos e negações, erguida sobre infinitas formas de preconceitos – a favor de uma visão míope e monocrática, incapaz de reconhecer a riqueza da diversidade de povos e gentes forjados por rios, florestas e ancestralidades.
O Brasil, por séculos colonizado, saqueado, explorado – segue reproduzindo essa colonização. Isso pode ser percebido nas ações, políticas e programas verticalizados, quase sempre vindos de longe e de fora, com transplantes mecânicos, sem escuta, eivados de equívocos desde a origem, que em nada representam o lugar onde estão sendo executados, pois tomam como referência uma estética sudestina que, também para se constituir, apaga contínua e sistematicamente a diversidade em seu próprio território.
Se intelectuais originários como Ailton Krenak, David Kopenawa, Sonia Guajajara, Célia Xakriabá anunciam “O futuro é ancestral!”, no campo das ações, sejam elas públicas ou privadas, os organizadores de eventos, ações, atividades na Amazônia, seguem nesse modo pouco includente e verticalizado que em nada amplia o pensamento, não constrói políticas participativas e tampouco anuncia um futuro contemporâneo culturalmente expressivo. Além de não agir de maneira respeitosa com quem desde sempre se fortaleceu pelo pensamento e maneira de estar no território.
A diversidade, em todos os aspectos, é potência para a construção de uma sociedade fortalecida e a Amazônia é um espaço diverso, sendo sua cultura seu maior ativo. É possível inclusive que, pela cultura, seja articulada uma frente de enfrentamento à emergência climática que assola o mundo e que tem buscado solução “fora da Amazônia”. A solução, se pensada de maneira profunda, orgânica e reconhecendo a importância de uma escuta ativa pode ser iniciada de dentro, das sutilezas de conhecimentos tradicionais e originários.
É hora de reconhecer as sabedorias ancestrais que compõem as Amazônias e escutar verdadeiramente este território. É hora de ouvir uma Amazônia “contada na primeira pessoa”, é necessário ouvir em todas as áreas, os povos que habitam os territórios, na floresta e na cidade.
As Amazônias são uma mistura de tudo que há de mais diverso: são floresta e cidade, são rio e rua, bairro e terra indígena, são quilombo e seringal, são falas que ecoam em cantos originários, músicas de trabalho de populações tradicionais e poesia de slam das praças das cidades.
As Amazônias brigam por passagem, por um varadouro possível para compor a almejada foto da autêntica e diversa cultura brasileira. Não pedem licença, elas estão desde sempre, cobram o reconhecimento e respeito, alertam que é preciso entender a chegança coletiva, em quantidades, em bandos, porque assim é a maneira de ser e viver.
É tempo de reconhecimento das Amazônias e de seus moradores! É tempo de novas histórias, muito mais narradores, mais atravessamentos e menos atravessadores!
Texto de Karla Martins, revisado e comentado por Eurilinda Figueiredo e Rose Farias