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NINJA na Estrada: o milagre do boi que ressuscitou

por | maio 22, 2023

Na fronteira da Bolívia, Guajará-Mirim é o município de Rondônia com maior percentual de população indígena. Graças aos desmandos do Ministério Público, a cidade acumula um prejuízo de 6 anos impedida de realizar sua maior manifestação cultural: O Duelo na Fronteira, dos bois Flor do Campo e Malhadinho. Este ano, heroicamente, Guajará está ressuscitando seu bumbódromo: o boi-bumbá voltou!

Foto: Bruno Corsino / Secom – Governo de Rondônia

Por Ricardo Targino

O multiverso das periferias

O chão do Brasil das beiradas, dos beiradões e das beiras já começou a tremer e não haverá retorno ao normal, porque em todo canto o tempo da extinção começou. Fomos até Guajará-Mirim, no Estado de Rondônia, nas margens do Mamoré, fronteira com a Bolívia. Uma cidade “condenada” a andar para trás, uma terra do “já teve” e onde dizem que o progresso não volta mais. 

De Guajará diz-se muita coisa, inclusive que a culpa de seu “atraso” é do Mirim, “apequenando” a cidade já no seu nome. Diz-se também que a culpa é dos 93% de cobertura vegetal mantida graças às áreas de proteção ambiental. Colocam a culpa também no povo, humilhado nas piadas feitas sobre seus mais destacados coletivos: indígenas, nordestinos e bolivianos. Um imaginário vira-lata e preconceituoso, típico de elites que além de preconceituosas, são tremendamente preguiçosas, e que, por isso mesmo, precisam criar inimizade e desconfiança no meio de povo, para dividi-lo e distraí-lo. E quem desdenha, quer comprar. Vale não perder de vista a saberia do dito popular.

Uma cabeça enterrada em Guajará

A verdade é que Guajará-Mirim é uma potência impedida de ser, no mesmo sentido de Darcy Ribeiro ao dizer de um povo “impedido de ser” ele mesmo. A cidade é um ponto verde rodeado pela soja do AGRO mais tóxico e ladeado pelas águas doces do Mamoré que une o Brasil e a Bolívia. Um rio que une, ou seja, um rio que não mais separa, mas que une dois países irmãos, na periferia do mundo capitalista. Inviabilizar uma potência é a mais antiga forma de domesticá-la e submetê-la. No caso de Guajará, inviabilizá-la é parte do projeto de transformar tudo que resta de floresta em pasto e campo de soja.

Afinal, aqui quem pressiona a comunidade é, como sempre, a monocultura tóxica do AGRO e a servidão do neopentecostalismo: ambas igualmente destrutivas e autoritárias. Uma atualização anacrônica do mundo feudal, que no fundo, continua sendo o maior sonho da elite branca rural que não precisa mais da multidão de escravos graças à mecanização da monocultura e a maximização do lucro pelo envenenamento do alimento, da terra, da água e do povo das cidades infestadas pela soja transgênica.

Foto: Mídia NINJA

O Brasil de costas para o Brasil

A fronteira não é onde um país acaba, mas sim onde ele começa. Mas somos um país de costas para nossas fronteiras, especialmente as fronteiras amazônicas, o que confirma o racismo que estrutura nosso olhar.

À exceção das “fronteiras brancas” do Sul, vistas com o típico olhar de fascínio colonial, nossas demais fronteiras são parte de um gigante país feito de múltiplas periferias. O Brasil é o que dá liga a um enorme mosaico de periferias. É o Brasil que dá unidade a elas, ao mesmo tempo em que são elas que o constituem: as periferias urbanas e suburbanas, rurais e florestais, dos litorais e de gigantes estradas fluviais da Amazônia.

O milagre da cura

É das beiras desse Brasil periférico e tropical que nasce o milagre. É das periferias que brota a cura necessário para o adoecimento não apenas da sociedade brasileira, mas do próprio planeta nesse começo de século. Se o adoecimento é muldimensional e sistêmico, a cura é necessariamente cultural e coletiva.

A volta do Duelo na Fronteira ao Bumbódromo de Guajará-Mirim é a faísca elétrica necessária para um milagre que vem a partir da cultura mas que se irradia por toda parte. O milagre que transforma o problema em solução. Que faz da vulnerabilidade sua força para gerar oportunidades e inventar mundos novos.

Os bois Malhadinho e Flor do Campo estavam embargados judicialmente há 6 anos. Sob a alegação de problemas nas prestações de contas, os bois foram interditados e chegou-se ao absurdo de lacrarem o bumbódromo e abandoná-lo ao capim.

Quem tem ódio da cultura?

A interdição do boi-bumbá é na verdade uma tentativa de culturicídio. Algo que já tornou-se típico da ação dos agentes do fundamentalismo religioso que nos últimos anos radicalizou sua estratégia de aparelhamento das instituições do Estado para sua cruzada de “ódio ao próximo”.  O poder judiciário usurpado para a guerra cultural do fundamentalismo religioso que viu no boi-bumbá amazônico uma expressão do diabo.

O boi-bumbá não é só a ópera, o carnaval e uma festa de massas na Amazônia. O boi-bumbá é também uma gigantesca economia criativa na floresta, exportadora de talentos para barracões de alegorias de todo o país e uma das mais importantes estratégias de intercâmbio cultural e de promoção do orgulho dos povos da floresta. 

Imagem aérea do bumbódromo em Guajará-Mirim

O parto de uma nova humanidade

À frente da ressurreição dos bois de Guajará, duas mulheres. Uma constante em toda a Amazônia: são as mulheres que estão salvando a floresta. São elas as Guerreiras de Gaia, as Amazonas Guardiãs da Vida da Mãe Terra. A elas, meu máximo respeito.

A volta do boi de Guajará é nossa volta coletiva pra casa, depois da longa batalha contra o projeto de morte da elite branca encarnada em Bolsonaro. Mesmo após a vitória democrática com Lula, o Brasil ainda nos dói, porque segue em trabalho de parto. Somos um país que ainda tem um nó na garganta, delatando tudo que ainda nos falta reconstruir, refundar e ressuscitar. E o que nos falta ainda é muito, mas muito já começou a ser feito porque a resistência não para e as tecnologias sociais brotam em todo canto.

A inteligência e a criatividade popular são verdadeiramente milagrosas e podem fazer revoluções quanto forem efetivamente empoderadas.  Quando o Estado estiver efetivamente a serviço da vida.  Quando finalmente a ECONOMIA deixe de servir ao dinheiro e passe finalmente a servir à sociedade, tornando-se inteiramente ECOLOGIA. Há menos distância entre economia e ecologia que entres as duas letras que as diferem.

Quando o HOMO SAPIENS, para adiar o fim do mundo, possa tornar-se finalmente o HOMO ECOLOGICUS da Era de Aquarius, um Homo Eccus holístico como organismo planetário que abriga a vida da espécie. Para isso, será preciso acelerar o reflorestamento. Afinal, o TEMPO DA EXTINÇÃO começou.

Se a extinção começou, o reset é urgente!

Nos círculos, o ponto de chegada é una nova marca de partida. O fim e o começo, coincidem no mesmo lugar. E tudo muda quando se muda o ângulo através do qual se olha e direção através da qual se avança. 

A fronteira é civilizatoria pois as  fronteiras são ecótonos culturais: áreas de transição dos biomas humanos. A virada dos mundos. 

Guajará-Mirim não é só um pontinho verde no mapa de Rondônia ameaçado pela soja. É também onde o Brasil começa. Um ecótono natural, cultural e social. Um mosaico de áreas protegidas pelos mais diversos marcos legais: há terras indígenas, reservas extrativistas, APA’s e Parques. 

É de lugares assim que podem surgir as experiências de novos modelos de desenvolvimento ambientalmente centrados, culturalmente estruturados e economicamente biorresponsáveis. As Guajarás de novas EFMM – ESTRADAS  DO FUTURO MAMORÉ MADEIRA, da alternativa amazônica e popular ao projeto tóxico da elite branca do AGRO.

A monocultura, assim como o neopentecostalismo e a extrema-direita neofascista, atuam centralmente no campo da GUERRA CULTURAL. A guerra é contra a diversidade, pois se trata de elites monoculturais. É no campo da guerra cultural que parte importante do futuro do Brasil será decidido. E quando falo do futuro do Brasil eu falo do mundo, porque a saúde do Planeta Terra depende da saúde do Brasil como organismo vivo e florestal.

Trata-se da ressurreição da vida, por isso, viva a ressurreição do boi de Guajará!  Viva a revolução cultural brasileira que vem das periferias para curar nossas feridas, erguer nossas cabeças e trazer esperança aos nossos corações.

O Brasil do reflorestamento da Mãe Terra. 

Brasil que eu falo é nós.

Vambora! Refloresta já!

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